Por vezes, ao ler ou ouvir o Evangelho, nossa atenção é atraída para um determinado ponto enquanto outros podem passar despercebidos ou quase tanto.
Um trecho do Evangelho da liturgia de poucos dias atrás presta-se muito para apalparmos esse fenômeno.
Trata-se da narração da cura do paralítico que foi descido pelo telhado (Mc 2, 1-12). Neste trecho vários pontos podem nos ter passado despercebidos. Analisemos um deles.
Pelo fato de Jesus ser o nosso Redentor, a muito justo título considera-se sua misericórdia, bondade e desejo de perdoar, ficando-se com a ideia errônea de que Ele não tinha o lado de repulsa ao mal, de sagacidade, etc.
Vários trechos do Evangelho falam claramente de inimigos de Jesus. Para aludir a um fato recente na liturgia, a Sagrada Família teve que fugir para o Egito pois, apenas nascido, já procuravam Jesus para matá-lO. Durante sua pregação, os evangelistas mencionam várias vezes que entre os ouvintes de Jesus estavam os fariseus e mestres da Lei procurando lançar-lhe armadilhas para justificar uma medida severa e, se possível, a morte. A armadilha no caso da mulher adúltera (Jo 8, 3-11) é típico disso. Depois do milagre retumbante da ressurreição de Lázaro querem matá-lO ( Jo 11, 50).
No caso do Evangelho referido inicialmente, vemos claramente que Jesus sabia estar rodeado de inimigos. Por isso usa de uma divina sagacidade: primeiro diz ao paralítico “Filho, os teus pecados estão perdoados”. Dito que provoca a ira dos mestres da Lei pois “só Deus pode perdoar os pecados”.
Só depois deles formularem entre si esta objeção Jesus prossegue: “Por que pensais assim em vossos corações?” E dá a prova de que é Deus e pode perdoar os pecados: “ O que é mais fácil, dizer ao paralítico: ‘Os teus pecados estão perdoados’ ou dizer ‘Levanta-te, pega a tua cama e anda’? Para que saibais que o Filho do homem tem, na terra, poder de perdoar pecados — disse Ele ao paralítico — Eu te ordeno: levanta-te, pega a tua cama e vai para tua casa”.
Para vermos a divina sagacidade de Jesus, invertamos a sequência dos fatos: Ele curaria primeiro e depois diria que perdoava os pecados. Não teria o mesmo efeito de calar os inimigos.
Jesus pede de todos nós bondade, misericórdia, mas quer também que tenhamos sagacidade na defesa do bem e da virtude. Quando Ele fala sobre as qualidades dos discípulos, refere-se à astúcia da serpente ao lado da simplicidade da pomba (Mt 10, 16).